A BASE DA JUSTIFICAÇÃO — John W. Robbins


É insuficiente falar da justificação como Deus declarando o pecador justo. De fato, parar aí seria cair em um erro muito sério. Precisamos perguntar: Com qual base um Deus santo pode fazer esta declaração sobre um homem pecador? Qual é a base da absolvição de Deus?

Aqueles Que Negam a Necessidade da Base da Justificação

Alguns afirmam que, como Deus é Todo-Poderoso, ele não precisa de nenhuma “base” para perdoar o pecado. De fato, eles argumentam, insistir em tal base é desonrar a Deus. Essa insistência lança reflexões sobre a onipotência de Deus. Deus é perfeitamente capaz de perdoar o pecado e restaurar o pecador sem recorrer a nenhuma base. Nesta ênfase particular, o perdão é visto como aquilo que vem do Soberano. Justificação, na visão deles, é mero perdão. A justificação não tem nada a ver com justiça; é o ato do poder soberano. Certamente, a evidência bíblica da onipotência de Deus é quase infinita. Ironicamente, muitas pessoas que sustentam essa visão de justificação não acreditam no que a Bíblia diz sobre a onipotência e soberania de Deus.
Outros dizem que Deus é todo amoroso e, portanto, insistir em qualquer base com base na qual Deus deve perdoar o pecado é negar esse amor. O único fundamento, por assim dizer, é o amor do coração de Deus. Todas as expressões como “redenção por resgate”, “substituição”, “satisfação”, “propiciação” e “expiação” são indignas de Deus. Nesta visão, a cruz não é vista como a propiciação da ira de Deus, mas como uma demonstração insuperável do amor de Deus. Cristo sofre com e nos pecados do seu povo, mas não pelos pecados deles. Ele não paga a penalidade que esses pecados merecem. Essa visão foi defendida por mestres antigos da igreja (Orígenes e Abelardo) e por mestres mais modernos (Bushnell na América; Robertson, Maurice, Campbell e Young na Grã-Bretanha; Schleiermacher e Ritschl na Alemanha). Esses teólogos dizem que a demonstração do amor de Deus na cruz afeta não a Deus, mas ao homem. Esse amor age sobre o homem e gera amor do coração dos homens. Em vez de a morte de Cristo remover qualquer obstáculo no caminho da reconciliação do pecador com Deus, diz-se que a morte demonstra ao pecador que não há nenhum obstáculo entre ele e Deus. Essa visão da expiação tem sido apropriadamente chamada de “visão magnética”. A crucificação atua como um grande ímã para levar homens e mulheres ao arrependimento, e diz-se que Deus os aceita somente com base (ou seja, o arrependimento).
O terceiro atributo dentro de Deus que é invocado para negar a necessidade de qualquer base de justificação é, curiosamente, a justiça de Deus. Se Deus exigir uma “satisfação”, é dito que o envolveria em flagrante injustiça. Cristo é inocente e, para Deus, punir um Cristo inocente no lugar de pecadores culpados é menos do que justo. De fato, é absolutamente injusto! Tal conceito é cruel, vingativo e cheira a um Deus que se importa mais com sua preciosa santidade e lei do que com os seres humanos. Esta é uma visão “imoral” de Deus.
Portanto, para negar a necessidade de qualquer base sobre o qual Deus justifica o pecador, os homens apelam para algo dentro do próprio Deus: (a) sua onipotência; (b) seu grande amor; ou © seu infinito senso de justiça. Nenhuma dessas visões está correta. Todas essas visões contradizem a Bíblia. Em sua epístola aos Romanos, Paulo declara que “a justiça de Deus”¹ é a base sobre a qual um pecador é declarado justo aos olhos de Deus.

Aqueles Que Admitem a Necessidade de Uma Base, Mas dão Uma Visão Insatisfatória Dela

Além de apelar aos atributos de Deus para negar a necessidade da base da justificação, algumas pessoas também fazem um apelo ao homem. Eles entendem “a justiça de Deus” como uma justiça interior no homem.
Contudo, referir a justiça de Deus a algo dentro do homem está equivocado. 2 Coríntios 5:21 é decisivo contra essa visão. Paulo quer dizer que entendemos que o crente é feito justiça de Deus da mesma maneira que Cristo é feito pecado. É fora de questão dizer que Cristo foi feito pecado por uma transmissão de pecado em seu ser, e portanto é fora de questão falar do crente sendo feito a justiça de Deus por infusão, ou concessão, ou atribuição. Embora o pecado estivesse sobre Cristo, ele não estava em Cristo. Da mesma forma, embora a justiça de Deus esteja sobre o crente, ela não está no crente. Assim como o pecado condenando os eleitos estava fora de Cristo, também a justificação da justiça de Deus está fora do crente.
Então tem havido aqueles que veem a própria fé como o que se entende por “a justiça de Deus”. Embora existam diferentes modificações dessa visão, nenhuma delas vê a justificação da justiça de Deus como algo que está fora do homem. A mente não é lançada em Cristo para sua base, mas sim de volta a si mesma. Muitas pregações modernas sobre fé refletem essa visão particular. Essas pessoas minam a justificação, fazendo da fé a base, e não o mero meio ou instrumento da justificação. Quando a fé é vista como a base sobre o qual Deus justifica o pecador, a fé é transformada em uma nova lei. Quando esta nova lei é cumprida (isto é, quando uma pessoa crê), Deus está satisfeito, e por causa da fé do pecador, justifica-o. Tal visão da fé (como um “obra”, “uma obra evangélica”) está em contradição plana com o ensino claro das Escrituras de que não somos justificados por uma obra feita por nós nem uma obra feita em nós, mas somente por causa da obra de outro — a saber, Cristo. Sua obra foi feita fora de nós e para nós.
Aqueles que elevam a fé à base da justificação representam Deus aceitando um título imperfeito para um perfeito. Nessa visão, Deus acomoda seus padrões à capacidade do pecador. Ele abaixa seus padrões. Se este fosse o caso, o que impediria Deus de renunciar completamente às suas exigências? É óbvio que Deus exigiria muito pouco dos homens se a fé fosse a base de sua aceitação. Não é tão óbvio por que ele não pôde renunciar completamente às suas exigências. Mas Deus não baixou seu padrão para entrar no Céu. O requisito de entrada é, e sempre foi e sempre será, a perfeição imaculada. Deus não aceita a fé como um substituto para a perfeição.

A Verdadeira Base da justificação: A Justiça de Deus

A base da justificação é chamada de “a justiça de Deus” porque Deus, em seu grande amor e misericórdia, iniciou e é seu autor.
“A justiça de Deus” é a obra do Deus-homem, Jesus Cristo. O mediador entre Deus e o homem não pode ser somente Deus ou somente homem (Gálatas 3:20). O mediador representa duas partes entre as quais ele intervém. Portanto, o Mediador deve estar relacionado com ambos e iguais a ambos (1 Samuel 2:25;  9:33; Hebreus 10:5). O mediador deve ser tanto Deus como homem. Porque a justiça de Deus é a obra do Deus-homem, tal justiça também é literalmente perfeita, infinitamente valiosa e eternamente válida. É também uma justiça completamente voluntária, capaz de ser doada!
A justiça de Deus tem, como seu padrão, o atributo divino da justiça espelhada na lei de Deus. O caráter divino é visto principalmente em dois aspectos: (1) Ele é visto na demanda por satisfação. Jesus Cristo na carne, mantendo a lei de Deus, é a declaração do Deus justo, que é fiel a si mesmo. (2) O caráter divino é também visto na provisão da satisfação. Jesus Cristo na carne, cumprindo a lei de Deus, é a declaração do infinito amor do justo Deus buscando a salvação de seu povo. Jesus Cristo é a declaração tanto da justiça quanto da misericórdia de Deus. Ele tanto sustentou como cumpriu a lei de Deus. Ele não negou nem desobedeceu a lei de Deus.
A lei faz uma dupla reivindicação sobre os homens: (1) a obediência perfeita como o único caminho para a vida (Gálatas 3:12); (2) uma maldição incorrida por aqueles que a violam (Gálatas 3:10-13). O Deus-homem, Jesus Cristo, foi feito sob a lei — feito voluntariamente sob a lei — para que ele pudesse atender às exigências da lei em ambos os aspectos em nosso favor. O viver e morrer do Filho de Deus era um viver e morrer não por si mesmo, mas por todos os que creem. Por meio do instrumento de fé, pelo qual um pecador consente com a provisão divina da justiça requerida, Deus calcula o viver e morrer de Cristo para a conta do pecador. Esse viver e morrer é a justiça de Deus da qual fala o apóstolo Paulo, e é a única base da justificação do pecador.
Podemos agora perguntar: Por que essa base era necessária? Por que Deus não poderia ter se comportado de maneira soberana e perdoado o pecador sem a obra mediadora de Jesus Cristo? Em primeiro lugar, o caráter de Deus não permitiria isso. Cada um dos argumentos apresentados no início deste artigo é baseado em uma seleção arbitrária dos atributos de Deus. Deus é todo-poderoso. Mas ele também é todo santo. Declarar que Deus ignora a lei (pois é o que o mero perdão faz) porque ele é todo-poderoso, é negligenciar o importante ensinamento das Escrituras de que Deus tem uma aversão totalmente santa ao pecado (Habacuque 1:13) e que ele determina puni-lo. A verdade é que o Deus e Pai de Jesus Cristo exerce sua onipotência, não para renunciar à lei, mas para lidar adequadamente com o pecado daqueles que creem. A lei já havia sido quebrada. Mesmo uma revogação da lei por Deus teria chegado tarde demais. Além disso, a lei de Deus é uma parte essencial do seu plano para mostrar sua justiça e misericórdia salvando alguns e punindo outros. Uma revogação da lei para alguns teria destruído esse plano.
Mais uma vez, o grande amor de Deus se exerce, não na abolição arbitrária ou na aplicação inconsistente da lei, mas no cumprimento minucioso de ambos os preceitos e penalidades dessa lei por seu Filho. Ver a cruz somente como uma demonstração do amor de Deus é falhar em vê-la como a mais clara proclamação de quão seriamente Deus leva sua lei, a transgressão de sua lei e suas consequências.
Acusar Deus de injustiça implica negar a Trindade. Se considerarmos Jesus Cristo meramente humano, a acusação de injustiça pode ser inevitável. No entanto, se mantivermos a posição bíblica (e trinitária) de que “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo”, então o que é dito ser indigno de Deus é o maior tributo ao caráter de Deus. Deus fornece a satisfação que sua lei exige.
Não menos desrespeito e desonra é feito à santidade de Deus por aqueles que admitem a necessidade de uma base de justificação, mas que fazem disso motivo ou uma justiça interior do crente ou da sua fé. O caráter de Deus não exige apenas uma base de justificação, mas também uma base adequada. A única base adequada reconhecida pelas Escrituras é a perfeita obediência de Cristo e sua morte sem pecado, cumprindo tanto as exigências quanto as penalidades da lei. Podemos até dizer que ela concorda em palavra, pensamento e ação, na medida em que o próprio Deus concorda — deixando de fora, então, substitutos imperfeitos, como a “santidade” dos homens pecadores e sua fé. Não apenas o caráter de Deus exige uma base adequada para a justificação, mas também a natureza do pecado. Todos os que negam a necessidade da base da justificação ou que propõem motivos insuficientes têm uma visão falsa da lei de Deus e do pecado. A indignação do pecado exige uma expiação adequada.

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¹ 
Nota do tradutor: A expressão inglesa usada aqui para “a justiça de Deus” é “the righteousness of God”, que é diferente de “the justice of God”, a expressão usada por aqueles que negam uma base para a justificação. “The righteousness of God”, que é a expressão usada nas versões em inglês nas passagens da epístola aos Romanos, significa “a retidão de Deus”, i. e., Sua justiça como atributo, Sua santidade e profunda aversão ao pecado.


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John W. Robbins. The Ground of Justification. The Trinity Foundation Review, Julho de 1998. Extensivamente revisado e adaptado de Present Truth, uma publicação extinta.
Traduzido por Luan Tavares em 25/08/2019.

Sobre o autor:
Dr. John W. Robbins foi um residente do condado de Unicoi, Tennessee. Nascido e criado na Pensilvânia, ele recebeu seu A. B. do Grove City College (Pensilvânia) em 1969, cum laude, com formação em Ciência Política. Ele prosseguiu nos estudos de pós-graduação na Universidade Johns Hopkins (Maryland), ganhando seu mestrado em Teoria Política (1970) aos 21 anos, e seu doutorado em Filosofia e Teoria Política (1973) aos 24 anos.

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