JOÃO CALVINO SOBRE A ORAÇÃO, A FÉ E OS BENEFÍCIOS DE DEUS
FÉ SÓLIDA E ESPERANÇA CONFIANTE DE QUE O SENHOR, MISERICORDIOSO, NÃO DEIXARÁ DE ATENDER COM MAGNANIMIDADE E BENEVOLÊNCIA
Prostrados e subjugados em verdadeira humildade, não obstante sejamos animados a orar, com segura esperança de alcançar resposta. Parecem coisas bem contrárias à primeira vista unir com o sentimento da justa cólera de Deus, a confiança em seu favor; e no entanto, ambas as coisas estão muito de acordo entre si, se oprimidos por nossos vícios, somos levantados pela mera bondade de Deus. Ora, como ensinamos previamente, que arrependimento e fé, elementos dos quais, entretanto, um nos aterra, o outro nos arrebata de alegria, são parceiros ligados entre si de um vínculo inseparável, assim nas preces importa que se fundam em reciprocidade. E Davi exprime este acordo, em poucas palavras: “Eu”, diz ele, “entrarei em tua casa na multidão de tua bondade; com temor adorarei no templo de tua santidade” [Sl 5.7]. Sob a bondade de Deus ele compreende a fé, não excluindo, enquanto isso, o temor, visto que não só sua majestade nos compele à reverência, como também, esquecidos de toda soberba e segurança própria, sob o medo nos contém o senso de nossa própria indignidade. Na verdade, não entendo confiança como sendo a que afague a mente com suave e perfeita quietude, liberada de todo senso de ansiedade, pois aquietar-se assim tão placidamente pertence àqueles que, usufruindo de todas as coisas conforme o desejo, não deixam tanger por nenhuma preocupação, não são abrasados por nenhum desejo, nenhum temor os atormenta.
Aos santos, porém, o melhor estímulo para a invocação de Deus é que, enquanto são acossados por sua necessidade, são acometidos por sua inquietação e pouco falta a que desfalecidos se quedem em si mesmos, até que, oportunamente, a fé os socorra; pois que entre angústias tais, de tal modo se manifesta a bondade de Deus, que de fato gemem, cansados pelo peso dos males presentes, até se esforçam e se sentem opressos pelo temor de males maiores; contudo, nela confiados, não só superam a dificuldade de tê-las de suportar, e são confortados, mas ainda nutrem esperança de escape e livramento. Portanto, convém que a oração do homem piedoso emerja de uma outra dessas duas disposições; além disso, a uma e outra contenha e represente. Isto é, que gema com os males presentes e que ansiosamente se arreceie de que seja acometido por novos vindouros; contudo, ao mesmo tempo, em Deus se refugie, de modo nenhum duvidando de que ele esteja pronto a estender sua mão ajudadora. Pois, é espantoso como Deus se irrita com nossa falta de confiança, se dele rogamos beneficência pela qual não nutrimos esperança. Consequentemente, nada mais próprio à natureza das orações que prescrever-se e estatuir-se-lhes esta lei: que não se precipitem às cegas, mas que sigam a fé a precedê-las como um guia.
Cristo chama a todos nós a este princípio, com esta exclamação: “Por isso vos digo que todas as coisas que pedirdes, orando, crede receber, e as tereis” [Mc 11.24]. O mesmo confirma também em outro lugar: “Tudo quanto tiverdes pedido em oração, crendo” etc. [Mt 21.22]. Com isso concorda Tiago: “Se alguém tem falta de sabedoria, peça-a àquele que a todos dá liberalmente, nem recrimina; peça, porém, com fé, nada duvidando” [Tg 1.5, 6]. Onde, a fé opondo à dúvida, com muita propriedade expressa o poder desta. Não é menos notável o que também acrescenta: que nenhum proveito teriam os que invocam a Deus perplexos e medrosos, nem em seus ânimos consideram que serão ou não ouvidos [Tg 1.7], os quais até compara às ondas que são variadamente revolvidas pelo vento e levadas em torvelinhos [Tg 1.6]. Do quê designa ele em outro lugar [Tg 5.15], ser a oração da fé uma legítima oração. Então, quando tantas vezes Deus declara que a cada um haverá de dar segundo sua fé [Mt 8.13; 9.29; Mc 11.24], evidencia que nada podemos conseguir à parte da fé.
Em suma, é a fé que alcança tudo quanto se concede no ato de orar. Isto significa essa famosa sentença de Paulo, para a qual pouco atentam os homens sem discernimento: “Como alguém invocará àquele em quem não creem? Quem, porém, crerá, a não ser que ouça?” [Rm 10.14]. “A fé, porém, procede do ouvir; o ouvir procede da Palavra de Deus” [Rm 10.17]. Porque, deduzindo, passo por passo, o princípio da oração da fé, demonstra com toda clareza que não é possível que alguém invoque sinceramente a Deus, a não ser aquele a quem, pela pregação do evangelho, se faz conhecer sua clemência e bondade; aliás, tenha sido exposta de forma bem íntima.
IMPÕE-SE REITERAR A CERTEZA DA FÉ EM QUE DEUS NOS RESPONDERÁ ÀS PRECES, EM CONTRAPOSIÇÃO À RENITÊNCIA DAQUELES QUE O NEGAM
Desta necessidade bem pouco cogitam nossos adversários. Daí quando instamos com os fiéis a que, com segura confiança de espírito, estejam convictos de que Deus lhes é propício e benévolo, pensam que estamos afirmando a mais absurda de todas as coisas. Com efeito, se tivessem alguma experiência da verdadeira oração, realmente compreenderiam que não se pode invocar corretamente a Deus sem esse sólido senso da benevolência divina. Quando, porém, ninguém pode perceber bem o poder da fé, a não ser aquele que a sente por experiência em seu próprio coração, que proveito terias disputando com homens dessa estirpe, que mostram francamente que nada jamais tiveram, senão imaginação fútil? Ora, quão importante e necessária é esta certeza da qual tratamos, se pode compreender principalmente pela invocação de Deus. O que não entender isto demonstra que tem uma consciência sobremodo obscura. Portanto, deixando de parte esse gênero de cegos, apeguemo-nos firmes a essa declaração de Paulo: que Deus não pode ser invocado por nenhum outro, senão por aqueles que conhecem sua misericórdia no evangelho [Rm 10.14] e já foram persuadidos, com toda convicção, de que ela lhes foi concedida.
Ora, que espécie de oração será esta: “Ó Senhor, na verdade estou em dúvida se porventura me queiras ouvir; contudo, porque estou dominado por essa ansiedade, me refugio junto de ti, para que, caso eu seja digno, me socorras”? Todos os santos angustiados dos quais lemos as orações nas Escrituras não são assim. Nem assim nos instruiu o Espírito Santo através do Apóstolo que nos manda que “nos aproximemos do trono celestial com confiança, para alcançarmos graça” [Hb 4.16]; e quando, em outro lugar, ensina que “temos ousadia e acesso em confiança, pela fé em Cristo” [Ef 3.12]. Portanto, se queremos orar com proveito, é indispensável que agarremos com ambas as mãos esta certeza de que obtemos o que pedimos, a qual não só nos manda o Senhor de sua voz, mas também, por seu exemplo, todos os santos nos ensinam. Pois, afinal, a oração aceitável a Deus é aquela que, por assim dizer, nasce dessa fé pressuposta e esta tem por base a tranquila convicção da esperança. Podia ele contentar-se com a simples menção da fé. Entretanto, não só lançou mão da confiança, mas também a proveu da liberdade ou ousadia, a fim de que, com esta marca, nos distinguisse dos incrédulos, os quais de fato oram conosco a Deus, indiscriminadamente, mas de forma fortuita.
Razão por que toda a Igreja ora no Salmo: “Seja sobre nós a tua misericórdia, assim como esperamos em ti” [Sl 33.22]. A mesma condição, também em outro lugar, é introduzida pelo Profeta: “Quando eu a ti clamar, então meus inimigos voltarão para trás: isto sei, porque Deus é por mim” [Sl 56.9]. Igualmente: “Pela manhã ouvirás minha voz, ó Senhor; pela manhã apresentarei a ti minha oração, e vigiarei” [Sl 5.3]. Destas palavras concluímos que as orações são inutilmente lançadas ao ar, a menos que a esperança as acompanhe; e assim, como se estivéssemos em um posto de vigia, aguardamos a Deus com espírito sereno. Está de acordo com isto a sequência da exortação paulina, pois antes de insistir com os fiéis a que orem a todo tempo no Espírito, com vigilância e constância, lhes ordena, antes de tudo, a que tomem o escudo da fé, o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a Palavra de Deus [Ef 6.16-18].
Aqui, pois, os leitores rememorem o que eu disse previamente, a saber: a fé de modo algum é maculada, quando está associada com o reconhecimento da miséria, da pobreza, de nossa sordidez. Ora, por mais que os fiéis se sintam oprimidos por pesada massa de delitos, ou nela labutarem, não só vazios de todas as coisas que podem granjear favor junto a Deus, mas até sobrecarregados de muitas culpas que, com razão, o tornam temível, contudo, não cessam de apresentar-se diante dele; tampouco este sentimento os aterra a que recorram a ele, quando outro não lhe é o acesso. Pois a oração não foi ordenada para que nos exaltemos arrogantemente diante de Deus, ou estimemos demasiadamente algo que seja nosso; ao contrário, para que, havendo confessado nossa culpa, deploremos junto a Deus nossas misérias, como os filhos apresentam, com toda espontaneidade, suas lamúrias diante dos pais; senão que, antes, o acervo imenso de nossas maldades deve estar repleto de acicates ou aguilhadas que nos incitem a orar, como também, com seu exemplo, o Profeta nos ensina: “Sara minha alma, pois que tenho pecado contra ti” [Sl 41.4]. Certamente reconheço que haveria nestes aguilhões pontadas mortíferas, caso Deus não nos socorresse. Mas, mercê de sua incomparável indulgência, o Pai boníssimo proveu oportuno remédio, pelo qual, acalmando toda perturbação, aliviando os cuidados, dissipando os temores, a si afavelmente nos atrai; mais ainda, removendo todos os pedregulhos, quanto mais as barreiras, caminho fácil nos aplana.
A CERTEZA QUE ASSISTE À ORAÇÃO REPOUSA NO EXPRESSO PRECEITO DIVINO, A QUE COMPLEMENTA A PROMESSA DIVINA, QUE É SEGURA E IMARCESCÍVEL
Em primeiro lugar, deveras nos ordenando-nos que oremos, com esse mesmo preceito nos acusa de ímpia contumácia, caso não lhe obedeçamos. Não se podia dar mandamento mais preciso do que o que se encontra no Salmo: “Invoca-me no dia da tribulação” [Sl 50.15]. Mas, visto que entre os deveres da piedade, nenhum as Escrituras recomendam com maior frequência, não há razão para demorar-me aqui por mais tempo. “Pedi”, diz o Mestre, “e recebereis; batei, e se vos abrirá” [Mt 7.7]. Todavia, a este preceito se anexa também uma promessa, como se faz necessário, pois ainda que todos confessem que se deve obedecer ao preceito, contudo, a maior parte fugiria de Deus quando chamada, a não ser que prometesse estar pronto a ouvir-lhes os rogos, e inclusive a vir-lhes ao encontro. Portanto, postos estes dois elementos, certo é que todos quantos procuram esquivar-se para que não venham a Deus diretamente são não meramente rebeldes e indóceis, mas também incriminados de incredulidade, porquanto não confiam nas promessas. Isto requer tanto mais acurada observação, porque os hipócritas, a pretexto de humildade e modéstia, mui soberbamente desprezam o preceito de Deus quanto nulificam a fé em seu benigno convite; mais ainda, o defraudam da parte principal de seu culto. Ora, onde repudiou os sacrifícios, nos quais então parecia residir toda a santidade, declara que isto é supremo e para si precioso acima das demais coisas: ser ele invocado no dia da necessidade [Sl 50.7-15]. Portanto, onde exige o que é seu, e nos anima à alegria de obedecer, desaparece toda e qualquer condição a dúvida com que nos escusemos.
Portanto, todo e qualquer testemunho que por toda parte ocorre nas Escrituras, nos quais nos é prescrita a invocação de Deus, são tantas outras bandeiras fincadas diante de nossos olhos a nos inspirar confiança. Seria temeridade prorromper na presença de Deus, a não ser que ele próprio se antecipasse em chamar-nos. Daí, em sua Palavra o caminho nos escancara: “Direi: é meu povo; e ela me dirá: O Senhor é o meu Deus” [Zc 13.9]. Vemos como ele previne a seus fiéis e como quer que o sigam; e por isso não há por que temer que esta melodia lhe seja pouco suave, a qual ele mesmo dita. Que nos venha à mente, sobretudo, essa insigne caracterização de Deus, firmados na qual, sem qualquer dificuldade, superaremos todos os obstáculos: “Tu, ó Deus, que ouves a oração; a ti virá toda carne” [Sl 65.2]. Que pode haver mais agradável ou fagueiro do que Deus se revista deste título para assegurar-nos que nada é mais próprio e conforme à sua natureza do que despachar as petições daqueles que lhe suplicam?
Daqui o Profeta infere que a porta está aberta não a uns poucos, mas a todos os mortais, porque também se dirige a todos com esta palavra: “Invoca-me no dia da aflição; livrar-te-ei, e tu me glorificarás” [Sl 50.15]. Segundo esta regra, Davi evoca a promessa que lhe fora dada, para que obtenha o que pede: “Pois tu, Senhor dos Exércitos, Deus de Israel, revelaste aos ouvidos de teu servo, dizendo: Edificar-te-ei uma casa. Portanto, teu servo se animou para fazer-te esta oração” [2Sm 7.27]. Do quê concluímos que ele seria possuído de temor, a não ser até onde a promessa o animasse. Assim, em outro lugar, ele se mune deste ensinamento geral: “O Senhor fará a vontade dos que o temem” [Sl 145.19].
Com efeito, é preciso que se atente bem nos Salmos que se corta o fio da oração por uma digressão acerca do poder de Deus, de sua bondade ou da certeza das promessas. Poderia parecer que, inserindo inoportunamente essas referências, Davi torna truncadas suas orações; mas, do uso e da experiência, os fiéis têm por estabelecido que o ardor se arrefece, a não ser que acendam novas chamas; portanto, não é supérfluo que, enquanto oramos, meditemos acerca da natureza de Deus e de sua Palavra. E assim, conforme o exemplo de Davi, não haja hesitação em infundir aquelas coisas que refaçam de novo vigor os ânimos desalentados.
SEGUROS DE QUE DEUS, EM VIRTUDE DE SUAS PROMESSAS, NÃO DEIXARÁ DE OUVIR NOSSAS ORAÇÕES, DEVEMOS ORAR COM REVERÊNCIA E TEMOR, CONTUDO, COM TOTAL CONFIANÇA
E causa admiração que a doçura de tantas promessas já não nos comove, senão friamente, ou absolutamente nada, de sorte que boa parte dos homens prefere, vagando por vias tortuosas, abandonando a fonte das águas vivas, cavar para si cisternas secas [Jr 2.13] a abraçar a liberalidade de Deus a si oferecida dadivosamente. “Cidadela inexpugnável”, diz Salomão, “é o nome do Senhor; a ela o justo se acolherá, e estará a salvo” [Pv 18.10]. Joel, porém, depois que profetizou acerca da horrível ruína que estava iminente, adiciona esta memorável sentença: “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo” [Jl 2.32; Rm 10.13]; bem sabemos que isso visa propriamente ao curso do evangelho [At 2.21]. Dificilmente um em cem é movido a dar um passo adiante ao encontro de Deus. Ele mesmo proclama através de Isaías: “Invocar-me-eis, e eu vos ouvirei; sim, antes que clameis, eu vos responderei” [Is 65.24]. Em outro lugar, digna também desta mesma honra a toda a Igreja em comum, uma vez que ela se estende a todos os membros de Cristo: “Ele me invocará, e eu lhe responderei; estarei com ele na angústia; dela o retirarei, e o glorificarei” [Sl 91.15].
Entretanto, como já disse, meu propósito não é enumerar todas as passagens, mas escolher as mais relevantes, das quais apreciemos quão amavelmente Deus nos convida a si e de quão apertados grilhões nos tem cingido a ingratidão, quando, entre acicates tão agudos, ainda delonga nossa indolência. Portanto, que estas palavras nos ressoem sempre aos ouvidos: “O Senhor está perto de todos os que o invocam, dos que o invocam em verdade” [Sl 145.18]. De igual modo, as passagens que temos citado de Isaías e Joel, nas quais Deus afirma que está atento a ouvir-nos as orações, e por isso se deleita como com um sacrifício de aroma agradável, quando sobre ele lançamos nossos cuidados [Sl 55.22; 1Pe 5.7]. Recebemos este fruto singular das promessas de Deus quando formulamos nossas orações não de forma dúbia e vacilante, mas, antes, firmados na Palavra daquele cuja majestade de outra sorte nos aterraria, ousamos invocá-lo como nosso Pai, porquanto se digna sugerir-nos este nome dulcíssimo. Resta que, atraídos por tais advertências, nos deixemos persuadir de que temos motivos de sobra para sermos ouvidos, uma vez que nossas orações não se firmam em nenhum mérito; pelo contrário, toda a dignidade e esperança de obter resposta estão fundadas nas promessas de Deus e delas dependem, de sorte que nem mesmo é necessário outro sustentáculo, nem é preciso que andemos olhando ao redor e de um lado para outro.
E assim se faz necessário que fixemos na mente isto: ainda que não sobressaiamos em santidade igual à que é louvada nos santos patriarcas, profetas e apóstolos, no entanto, uma vez ser comum a eles e a nós o preceito de orar e comum ser a fé, se na Palavra de Deus nos firmamos, então somos associados a eles neste direito. Porque, como já dissemos, ao declarar que haverá de ser favorável e propicio a todos, Deus dá uma certa esperança, mesmo aos mais miseráveis do mundo, de que obterão o que tiverem pedido; por isso se devem notar as fórmulas gerais pelas quais ninguém é excluído, como dizem popularmente, desde o primeiro até o último, contanto que se faça presente a sinceridade de coração, insatisfação conosco mesmos, humildade e fé, para que nossa hipocrisia não profane o nome de Deus com invocação enganosa. O Pai boníssimo não rejeitará aqueles a quem não só exorta a virem a ele, mas também os atrai de todas as formas possíveis. Daqui essa forma que Davi tinha de orar, que há pouco mencionei: “Pois tu, Senhor dos Exércitos, Deus de Israel, revelaste aos ouvidos de teu servo, dizendo: Edificar-te-ei uma casa. Portanto, teu servo se animou para fazer-te esta oração. Agora, pois, Senhor Deus, tu és o mesmo Deus, e tuas palavras são verdade, e tens falado a teu servo este bem. Sê, pois, agora servido de abençoar a casa de teu servo, para permanecer para sempre diante de ti, pois tu, ó Senhor Deus, o disseste; e com tua bênção será para sempre bendita a casa de teu servo” [2Sm 7.27-29]. Assim também em outro lugar: “Assiste a teu servo segundo tua palavra” [Sl 119.76]. E todos os israelitas, igualmente, sempre que se fortificam da lembrança do pacto, declaram suficientemente que não se deve orar a medo, quando Deus assim prescreve, e nisto imitaram os exemplos dos patriarcas, especialmente de Jacó que, depois de confessar estar muito abaixo de tantas misericórdias recebidas da mão de Deus [Gn 32.10], no entanto, diz estar animado a pedir coisas maiores, porque Deus prometera haver de fazer [Gn 32.12].
Contudo, quaisquer pretextos a que os incrédulos recorram, quando não recorrem a Deus sempre a necessidade os impele, não o buscando, nem lhe implorando a ajuda, não de outro modo o defraudam da legítima honra como se fabricassem para si novos deuses e ídolos, uma vez que, desta maneira, negam ser Deus o autor de todas suas boas coisas. Por outro lado, não há coisa mais eficaz para livrar os fiéis de todo escrúpulo do que animar-se do senso de que ao orar obedecem o preceito de Deus, o qual afirma que não há coisa que mais o satisfaça do que a obediência; portanto, não existir nada que nos detenha. Daqui mais claramente refulge uma vez mais o que eu disse antes: com temor, reverência e solicitude os espírito intrépido de oração se enquadrar muito bem, nem tampouco é absurdo que Deus levante os que se acham prostrados.
Dessa maneira, concordam admiravelmente as diversas formas de expressão que na aparência se mostram contraditórias. Jeremias e Daniel dizem que apresentam suas súplicas diante de Deus [Jr 42.9; Dn 9.18]. Em outro lugar, Jeremias: “Aceita agora nossa súplica diante de ti, e roga ao Senhor teu Deus, por nós e por todo este remanescente” [Jr 42.2]. Por outro lado, dizem com frequência, que os fiéis elevam suas orações. Assim fala Ezequias, rogando ao Profeta que interceda em seu lugar [2Rs 19.4]. E Davi deseja que sua oração se eleve como incenso [Sl 141.2]. Isto é, embora, persuadidos do amor paterno de Deus, alegremente lhe confiem sua guarda, não hesitam em implorar a assistência que graciosamente promete, contudo, não os embala genuína segurança, como se já dominados por um semblante animoso, senão que de tal maneira vão subindo de degrau em degrau das promessas, que sempre permanecem abatidos em sua prostração.
O FATO DE DEUS OUVIR AS ORAÇÕES DE SEUS SANTOS NESTA VIDA NÃO PROVA O PODER DE SUA INTERCESSÃO APÓS A MORTE, ANTES NOS DESAFIA A ORAR COMO FIZERAM
Mas o que a alguns realmente impressiona é que frequentemente lemos que as orações dos santos são ouvidas. Por quê? Obviamente, porque oraram. “Em ti esperaram”, diz o Profeta, “e foram salvos; clamaram, e não foram confundidos” [Sl 22.4, 5]. Oremos, pois, também nós, segundo seu exemplo, para que, à semelhança deles, sejamos ouvidos. Estes, porém, contrariamente arrazoam, em contraposição a tudo que é próprio, dizendo que ninguém será ouvido, senão os que já foram ouvidos. Tiago o expressa muito melhor! “Elias”, diz ele, “era um homem semelhante a nós, e orou fervorosamente para que não chovesse, e por três anos e seis meses não choveu sobre a terra. Orou novamente, e o céu deu chuva, e a terra deu seu fruto” [Tg 5.17, 18]. Por quê? Porventura infere Tiago que houvesse em Elias alguma prerrogativa singular à qual nos devamos acolher? Longe disso! Ao contrário, ele ensina o perpétuo poder da oração pia e pura, com o fim de nos exortar a que oremos de modo semelhante. Porque entenderíamos mal a prontidão e benignidade de Deus em ouvi-las, se com tais experiências dos santos não nos firmarmos com maior confiança em suas promessas, nas quais garante que seu ouvido estará atento para ouvir não a um ou a outro, ou mesmo a uns poucos, mas a todos que invocarem seu nome.
E por isso tanto menos admite escusa de sua ignorância, porque parecem desprezar, por assim dizer, deliberadamente a tantas advertências da Escritura. Porventura foi Davi frequentemente livrado pelo poder de Deus para apropriar-se dele, de modo que fôssemos livrados por seu sufrágio? Ele mesmo se expressa de modo muito distinto: “Os justos esperam por mim, até que me recompenses” [Sl 142.7]. Igualmente: “Os justos verão, e se regozijarão, e esperarão no Senhor” [Sl 52.6; 64.10]; “Este pobre clamou a Deus, e ele lhe respondeu” [Sl 34.6]. Muitas são as orações desta natureza nos Salmos, nas quais ele apela a Deus para que, por esta razão, conceda o que está a implorar, para que os justos não sejam envergonhados; antes, por seu exemplo, sejam animados a orar bem. Agora, estejamos satisfeitos com um só exemplo: “Por isso, todo santo orará a ti em tempo oportuno” [Sl 32.6]; passagem que cito com muito mais prazer, porque estes indoutos advogados não se acanham em haver vendido sua língua mercenária a serviço do papado, evocando-a para provar a intercessão dos mortos. Como se realmente outra coisa quisesse Davi senão mostrar o fruto que provirá da clemência e da benignidade de Deus, quando concede o que lhe é pedido.
E é preciso sustentar, de modo geral, que a experiência da graça de Deus, tanto por nós, quanto por outros, não é uma ajuda diminuta em confirmar-se a fidelidade de suas promessas. Não recito as muitas passagens onde Davi põe diante de si os benefícios de Deus como fator de confiança, porque prontamente ocorrerão aos leitores dos Salmos. Jacó ensinara isso mesmo, com seu exemplo: “Menor sou eu que todas as beneficências, e que toda a fidelidade que fizeste a teu servo; porque com meu cajado passei este Jordão, e agora me tornei em dois rebanhos” [Gn 32.10]. É verdade que ele se refere à promessa, todavia não a só à promessa, senão que, ao mesmo tempo, acresce o efeito, para que no futuro possa mais animosamente confiar que Deus haverá de ser o mesmo para consigo. Porquanto Deus não é semelhante aos mortais, que se entediam de sua liberalidade ou cuja capacidade se exaure; pelo contrário, deve ser estimado por sua própria natureza, como judiciosamente o faz Davi: “Tu me redimiste”, diz ele, “Senhor Deus da verdade” [Sl 31.5]. Depois que a Deus tributa o louvor de sua salvação, acrescenta ser ele veraz, porquanto, a não ser que fosse perpetuamente semelhante a si mesmo, o argumento que se tomaria de seus benefícios não seria suficientemente sólido para confiar nele e o invocar. Quando, porém, sabemos que sempre que nos assiste ele dá exemplo e prova de sua bondade e fidelidade, não há por que temer que nossa esperança nos arraste à vergonha ou nos engane.
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João Calvino. As Institutas - Volume 3. Edição Clássica (latim), pp. 328-335, 348-351
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